Direito à saúde em tempos de pandemia
Advento da telemedicina é um avanço importante para o País durante a crise sanitária mais assustadora de nossos dias; Judiciário deverá ser provocado para mediar questões envolvendo pacientes e profissionais de saúde
*Por Leonardo Sobral Navarro
Escrever sobre o tema proposto no título deste artigo provocou-me primeiramente dois sentimentos distintos: entusiasmo e receio.
Entusiasmo pois o tema faz parte da nossa atuação profissional e acadêmica e, assim, a tarefa de mostra prazerosa e edificante.
O receio toma forma quando se faz necessário que o escrito agregue conhecimento e valor quando for consultado no futuro, seja ele daqui a cinco ou dez anos.
No contexto atual, quando falamos em saúde, pensamos logo em itens e conceitos como uso de máscara, álcool em gel, quarentena, restrições, crise econômica e, inevitavelmente, todas as demais consequências que envolvem a pandemia da Covid-19 em que estamos inseridos.
Estamos vivenciando uma pandemia só similar à gripe espanhola, que assolou o mundo há pouco mais de 100 anos. Em que pese o avanço da medicina e a alta tecnologia hoje em voga alicerçando a atividade médica, arrisco afirmar que em nenhum outro momento os mais distantes países padeceriam das mesmas incertezas diante do mortal Coronavírus.
O mundo foi pego de surpresa e mazelas saltaram aos olhos de forma cruel e devastadora.
Especificamente no Brasil, a sensação de insegurança se faz presente. Insegurança decorrente de planos de contenção obscuros, dados incertos, declarações fantasiosas, ausência de comando que direcione ações concretas e eficazes no combate ao vírus e, o pior, rapidamente percebemos que nosso sistema de saúde poderá desmoronar diante da contaminação evidenciada pela famosa ‘curva ascendente’ de casos confirmados. Não menos importante, essa crise sanitária deixou evidente que somos despreparados, enquanto sociedade, para cumprir e respeitar regras restritivas ao direito de “ir e vir”.
Esse é o contexto, esses são os fatos e, assim, alguns pontos importantes merecem destaque.
Telemedicina
Contestada por muitos, a telemedicina ganhou seguidores instantâneos. Ministério da Saúde, Conselho Federal de Medicina e a União publicaram normas, dentro de suas competências, que viabilizaram a imediata implantação desse atendimento remoto.
Os benefícios trazidos por essa forma de atendimento são inúmeros, pois, além de viabilizar efetiva troca de conhecimento entre médicos, muitos pacientes estão sendo atendidos no conforto de suas casas, evitando deslocamentos até consultórios, clínicas e hospitais.
Evidente que inúmeras discussões envolvendo a telemedicina estão sendo travadas, tais como os critérios de remuneração dos profissionais que utilizarem essa forma de atendimento, validade das prescrições, forma de prescrição e a responsabilidade do médico.
Essas discussões, ainda que válidas, não podem ofuscar o passo gigantesco que foi dado, pois, essa forma de prestação de serviços possuía mais contrários à adeptos e, agora, restou evidente sua necessidade e eficiência.
Ponto polêmico e que causa estranheza é o dispositivo de autodestruição contido no texto legal. No momento que o estado de emergência for afastado, a lei perderá validade. Esperamos que normas definitivas sejam editadas viabilizando a manutenção da telemedicina como importante instrumento em prol da saúde.
Atendimentos eletivos, consultas e exames
O potencial de contaminação, a escalada de casos, a demanda por leitos e os impactos econômicos (população e planos de saúde), fizeram com que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) direcionasse algumas ações, destacando: prazos maiores para agendamento de consultas e exames, suspensão dos atendimentos em regime de Day-Use (termo usado para identificar que o procedimento que será realizado é eletivo, simples e, o paciente permanecerá por no máximo 24hs em ambiente hospitalar) e procedimentos eletivos (resguardadas situações envolvendo tratamento continuado, casos oncológicos, revisões pós-operatórias ou situações que coloquem em risco a integridade do paciente).
Foram medidas necessárias para garantir o atendimento prioritário aos portadores da COVID-19, mas que efetivamente criaram grande desconforto aos usuários de planos de saúde que aguardavam especialmente por procedimentos eletivos.
Planos de saúde
Evidente que testes para identificação da contaminação, bem como, o tratamento aos contaminados são de inteira responsabilidade dos planos de saúde, ainda que algumas operadoras tenham tentado inicialmente afastar tal responsabilidade.
A inadimplência dos usuários também foi objeto de ampla discussão e a ANS, timidamente, sugeriu aos planos que não rescindam contratos e não recusem atendimentos àquele usuário inadimplente. Infelizmente, a recomendação não está sendo atendida pelas operadoras e o Poder Judiciário já começa a ser provocado.
Outro ponto importante relacionado aos planos de saúde, foi o direcionamento encabeçado por associações (FenaSaúde e a Abramge) no sentido da suspensão dos reajustes por um prazo de 90 dias. Muitas operadoras efetivamente acataram esse direcionamento e não estão aplicando os reajustes aos contratos com data de aniversário nesse período.
Contingenciamento Profissional
Na esfera pública, o Ministério da Saúde editou a portaria 639/2020 que convoca profissionais diretamente relacionadas à saúde para, obrigatoriamente, se cadastrarem no site, para eventual convocação (I -serviço social; II - biologia; III - biomedicina; IV - educação física; V - enfermagem; VI - farmácia; VII - fisioterapia e terapia ocupacional; VIII - fonoaudiologia; IX - medicina; X - medicina veterinária; XI - nutrição; XII - odontologia; XIII - psicologia; e XIV - técnicos em radiologia).
Referido cadastro faz parte de um plano de contingenciamento e treinamento para manejo dos protocolos clínicos para o Covid-19, assim, o profissional que for convocado, não poderá alegar falta de conhecimento técnico.
E ainda, o profissional com inscrição válida em seu órgão de classe que não efetuar o cadastro, poderá sofrer procedimentos ético disciplinares.
Na justiça
O uso de medicamento de forma off-label (utilizar medicamento para tratar doença diversa à que ele foi desenvolvido) também é discussão presente e poderá gerar implicações para médicos e hospitais. Tema polêmico, amplo e que com certeza será analisado pelo Judiciário.
Importante também enaltecer e elogiar o incansável trabalho das equipes de profissionais de saúde que estão diretamente envolvidas no tratamento dos contaminados, por vezes, sem os equipamentos de proteção adequados e sem efetivo período de descanso entre os plantões. Pontos estes que geram ampla discussão e processos judiciais inevitáveis.
Objetivamente, apontamos situações reais que podem desencadear desdobramentos e consequências importantes. Por isso, merecem atenção e cautela ao serem analisadas e enfrentadas, especialmente pela ausência de normalidade que nos foi imposta por essa devastadora pandemia.
*Leonardo Sobral Navarro é advogado especializado em Direito à Saúde e Direito Médico e, Membro Efetivo da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB/SP. É sócio do Sobral Navarro Sociedade de Advogados.
Link
https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/direito-a-saude-em-tempos-de-pandemia/
Data: 05/06/2020 - Autor: Leonardo Sobral Navarro